Vila Viçosa, Portugal, 8 de dezembro
de 1894, 2 horas da madrugada: Nascia a poetisa hoje
mundialmente conhecida, Florbela Espanca.
Batizada em 20 de junho de 1895 com
o nome de Flor Bela Lobo, filha de Antónia da Conceição Lobo, o registro de
nascimento de Florbela não trazia o nome do pai: João Maria Espanca, que, talvez
baseado num costume há muito ultrapassado, logrou êxito em convencer a esposa
Mariana do Carmo Inglesa Espanca, a concordar com o já então inusitado relacionamento
extraconjugal. O nobre objetivo, o argumento final e infalível, provavelmente,
foi o de que só assim ele poderia ter os filhos que ela, verdadeiramente, não
lhe pode dar. Mariana vem, inclusive, a tornar-se madrinha da menina Flor Bela.
Nada indica que a peculiar situação,
condições e circunstâncias de seu nascimento, tenham, em qualquer momento, causado
algum ressentimento a Florbela: “... Nasci num berço de rendas rodeada de
afetos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não
conhecia,...” (Trecho de uma das cartas de Bela à amiga Julia). Na
mesma carta ela diz que tudo veio a mudar a partir dos seus 16 anos: “...
compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde
esse instante cá dentro se fez noite...” Mais a frente: “...
falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era...”
Em 10 de março de 1897 nascia aquele
que seria, para Florbela, a sua maior referência de amor: o irmão Apeles. Em
tudo semelhante, no que se refere à concepção e nascimento da irmã, Apeles só
ficaria junto a ela por volta de seus cinco anos de idade, ocasião em que a mãe
biológica, de ambos, mudava-se de Vila Viçosa para Évora. Flor Bela, embora
tenha sido amamentada pela mãe que a concebeu, foi desde o início criada pelo
pai e a esposa deste, a qual, apenas para lembrar, também foi a sua madrinha.
A despeito do nome de batismo, Flor
Bela (que em sua vasta correspondência e obra, por vezes assina Flor, por vezes
Bela ou simplesmente Florbela), vem a adotar o nome de: Florbela d’Alma da
Conceição Espanca.
Em carta datada de 12 de agosto de 1930, ao amigo,
professor, ensaísta e poeta italiano, Guido Battelli, na época docente da
cadeira de História da Literatura Italiana na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, Florbela confirmaria, a imensa sensibilidade que possuía desde a
infância, patenteando ainda toda a sua precocidade: “... Aos oito anos já fazia
versos, já tinha insônias e já as coisas da vida me davam vontade de chorar.
Tive sempre esta mesma sensibilidade doentia, esta profunda e dolorosa
sensibilidade que um nada martiriza, esta mesma ternura apaixonada pelos bichos
inocentes e simples. Ficava horas debruçada sobre um formigueiro, dizia coisas
ternas aos sapos e às aranhas, e era eu quem criava os pardais e as andorinhas
caídos dos ninhos que o meu irmão, solícito, me levava para que eu lhes
servisse de mãe. Quando matava as moscas para alimentar as andorinhas, já o
triste problema da injustiça da sorte me atormentava. Por que sacrificar as
moscas em benefício das aves?...”
Lugar comum dizer que Florbela era uma cabeça a frente de seu tempo, mas, no afã de demonstrar o fato, que fique a fórmula. Ainda na carta em pauta a poetisa registra uma opinião, por diversos fatores, singularíssima: “Não só a moral cristã é bela. Veja Ghandi, esse homem-luz, divino como um Cristo e grande, grande como ninguém! Admiro-o tanto!”
Lugar comum dizer que Florbela era uma cabeça a frente de seu tempo, mas, no afã de demonstrar o fato, que fique a fórmula. Ainda na carta em pauta a poetisa registra uma opinião, por diversos fatores, singularíssima: “Não só a moral cristã é bela. Veja Ghandi, esse homem-luz, divino como um Cristo e grande, grande como ninguém! Admiro-o tanto!”
A carta, em seu inteiro teor, além de um pouco
provável, sutil e refinado humor, revela que Florbela, declaradamente avessa a
política, não era, por isso, apolítica – não há paradoxo nesta afirmação. O que
se percebe é uma pessoa contrária a formatação política da época, como de resto,
a qualquer tipo de formatação. O trecho que segue, creio que consegue provar o
dito: “Exercícios militares, espingardas, couraçados, canções de guerra...
que horror! A Itália, para mim, será sempre a Itália das pedras mortas, mais
vivas do que todo esse magnífico cenário de realizações guerreiras, será a
Itália das basílicas, dos museus, dos claustros, a Itália dos jardins de
ciprestes e dos poentes de brocado. “Soror Saudade” podia cismar em paz no
claustro de Santa Cruz. Quando surgissem à porta as coroas de loiros, e as
fanfarras de guerra ecoassem como um sacrilégio sob aquelas abóbadas criadas
para a meditação e o esquecimento das pompas e vaidades humanas, “Soror
Saudade” iria, devagarinho, em bicos de pés, pedir silêncio em nome dos grandes
fantasmas adormecidos. E tenho a certeza que Miguel Ângelo, Galileu e todos os
outros me diriam, contentes: fizeste bem, “Soror Saudade”, é tão doce o
silêncio, tão bom dormir em paz! Só Maquiavel, diplomaticamente, não diria
nada, com receio de complicações com Mussolini...”
O professor Guido Battelli além de amigo – para
atermo-nos apenas aos fatos facilmente comprováveis, foi o grande incentivador
e divulgador da obra de Florbela, sendo o responsável pelas primeiras edições
póstumas. Graças à revelação e conhecimento da pródiga literatura epistolar da
escritora, é fácil derrubar versões apressadas, maledicentes e levianas quanto
ao amor desta ao irmão, que, se ultrapassou os limites do amor fraternal foi para
igualar-se ao amor maternal. Nada mais além!
São fartas as provas do inigualável amor de
Florbela ao irmão e, por nada haver de mal e muito menos de proibido neste
amor, ela não se cansava de propagá-lo, literalmente, em prosa e verso. Na
primeira carta aqui mencionada, Florbela contra-argumentando à amiga Júlia
afirmava: “Chamares-me anjo de bondade é troçares de mim, ou vontade de fazer
literatura. Eu não sou boa nem quero sê-lo, contento-me em desprezar quase
todos, odiar alguns, estimar raros e amar um.”
Em 27 de julho de 1930, Florbela em mais uma carta
a Guido Battelli, contava: “Minha mãe (a mãe biológica) morreu
com 29 anos duma doença que ninguém entendeu; a certidão de óbito diz
‘neurose’. O meu único irmão, o melhor da minha ternura e do meu orgulho, era
1º tenente de marinha, aviador. Morreu há três anos num vôo de treino. Tinha 30
anos; era belo, forte, altivo, homem de ação e um delicado artista. O cadáver
nunca apareceu; guarda-o o Tejo, ciosamente, no seu túmulo azul. Esse horror
arrasou-me, esfacelou-me...”