— Cabriolé
está aí, sim senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o
vigário para sacramentar dois moribundos.
A geração de
hoje não viu a entrada e a saída do cabriolé no Rio de Janeiro. Também não saberá
do tempo em que o cab e o tílburi
vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tílburi, anterior aos
dois, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os
cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos
esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que
chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria
atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá coisas raras sobre os três
esqueletos. O cabriolé não teve história; deixou apenas a anedota que vou
dizer.
— Dois! exclamou o sacristão.
— Sim, senhor, dois, nhã Anunciada e nhô
Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado
para outro, aflito, fora de si.
Alguém que
leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia
deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou
que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia
deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso,
nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntavam nada.
Não é que o
sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a
paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos
pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o
que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento
das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo: nos
intervalos ajudava a missa e o resto.
Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e
meão.
— Que Pedrinho
e que Anunciada serão esses? dizia consigo, acompanhando o coadjutor.
Embora ardesse
por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão
calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo
silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolé esperava-os; o
cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto
o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O
preto desandou o caminho a passo largo.
Que andem
burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas
cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca
do Nosso - Pai, embora soubesse
adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era acerca da
hora, — oito e quarto da noite, — aliás, o céu estava claro e a lua ia
aparecendo. O próprio cabriolé, que era novo na terra, e substituía neste caso
a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não
ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.
— Há de ser
gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspeda em alguma casa, decerto,
porque não há casa vazia na praia, e o número é da do Comendador Brito.
Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi... ? Amigos, não sei; conhecidos,
talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam cabriolé? Este mesmo preto é
novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos.
Era assim que
João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O cabriolé parou à
porta de um sobrado, justamente a casa do Comendador Brito, José Martins de
Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão
apearam-se e subiram a escada, acompanhados do comendador. A esposa deste, no
patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho
surdo, meia claridade, e os dois moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao
fundo.
Tudo se
passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e
ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da casa para tornar à
matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao
ouvido se os dois eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito;
eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma história terrível... Os
olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e
disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto — talvez naquela mesma noite.
Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele.
Foi tão curta
a moda do cabriolé que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe
a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não
importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de
vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a
sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a
pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador.
Em caminho foi
evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda. Compôs o negócio,
que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos
paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve
mais que um passo ou dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas
as coisas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão
completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais.
Sabia-as como o padre-nosso, isto é sem pensar nas palavras; ele rezava tal
qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a
regra mandasse rezar três dúzias de padre-nossos seguidamente, João das Mercês
os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as,
decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.
Na paróquia
todos lhe queriam bem, porque ele não enredava nem maldizia. Tinha o amor da
arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida
de Antônio e Antônio a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um
com outro, e os dois com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com
todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à
própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a
Deus; deixou de lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou
gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota que
então revivia por instantes era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem
fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação,
que era dele, valia mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando,
faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa, era um dos seus
atos de viver.
Quando chegou
à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé
direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a
ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em
conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava
pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou
pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se
de saber se os enfermos tinham ido para o céu, — ou se ainda eram deste mundo.
Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse.
— Não
morreram, nem sei se escaparão, quando menos, ela creio que morrerá, concluiu
Brito.
— Parecem bem
mal.
— Ela,
principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em
nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias.
— Já estavam
aqui? — perguntou o sacristão, pasmado de o não
saber.
— Já; chegaram
há quinze dias, — ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho
Carlos e aqui apanharam a doença...
Brito
interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante
toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse
a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e
ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João
das Mercês dizia consigo que havia alguma coisa mais que febre. A primeira idéia
que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio, também
pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para
encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este
andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os
que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado,
porta que se abria ou fechava. Tudo isso era coisa nenhuma para quem tivesse
outro cuidado, mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que
não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma
página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da
paróquia.
— Ah! — exclamou
Brito estacando o passo.
Parecia haver
nele o desejo impaciente de referir um caso, — a "história terrível",
que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele
dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.
João das
Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas
palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se
e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto;
ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço.
— Triste, sim,
triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não?
— Iam casar.
— Casar?
Noivos um do outro?
Brito
confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história
terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que era a
primeira vez que ouvia alguma coisa de gente que absolutamente não conhecia. As
caras, vistas há pouco eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia
menos curioso. Iam casar... Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo.
Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível.
Noivos e moribundos...
Vieram trazer
recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem
deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou
cinqüenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou
o comendador.
— Que lhe
dizia eu, há pouco? Quando menos, ela ia morrer; morreu.
Brito disse
isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As
lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da
defunta, que morava em Mata-porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador
gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe
pegou a idéia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os
acompanhara... Talvez fosse padrinho de casamento. Quis saber, e era natural, —
o nome da defunta. O dono da casa, — ou por não querer dar-lho, — ou porque
outra idéia lhe tomasse agora a cabeça, — não declarou o nome da noiva, nem do
noivo. Ambas as causas seriam.
— Iam casar...
— Deus a
receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar, disse o
sacristão cheio de melancolia.
E esta palavra
bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do
fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o
gesto com que o levou à janela, e o pedido que lhe fez de jurar,— jurou por
todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar
as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas como era o
comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a
primeira metade do segredo, a qual era que os dois noivos, criados juntos, vinham
casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável...
— E foi...? — precipitou-se
em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador.
— Que eram
irmãos.
— Irmãos como?
Irmãos de verdade?
— De verdade;
irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse
tudo nem claro, mas jurou que era assim, e eles ficaram fulminados durante um
dia ou mais...
João das
Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber
o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadáver
de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia,
embora não fosse da paróquia.
— E vamos,
vamos, foi então que a febre os tomou...?
Brito cerrou
os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro,
acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo
passamento. O choro, agora mais fraco, posto que mais esperado, não havendo já
de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão.
— Lá se foi o
outro, o irmão, o noivo... Que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo.
Saiba que eles se queriam tanto que alguns dias depois de conhecido o
impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem
apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um cabriolé e fugiram
de casa. Dado logo o alarma, alcançamos pegar o cabriolé em caminho da Cidade
Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram
de febre e acabam de morrer.
Não se pode
escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum
tempo, com dificuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais,
e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se
ter por indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a
um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais;
meteu-se-lhe em cabeça que o cabriolé da fuga podia ser o mesmo dos últimos
sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu
que sim. Donde veio chamar-se a esta página a "anedota do cabriolé."
FIM
Do livro "Relíquias de Casa Velha".
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