Em 28 de abril de 2007 o
jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria sobre a fase repórter da
escritora Clarice Lispector. A manchete foi: “Escritora se recusou a falar com
Pelé.” Logo abaixo detalhava: “Para ela, o sucesso da entrevista dependia principalmente
de se tornar ou não amiga da personalidade após a conversa.” Entre os
entrevistados aparecem nomes como Rubem Braga, Elis Regina, Jorge Amado,
Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Tom Jobim e Pablo Neruda. Entrevistadora de
um lado, entrevistados de outro, é a primeira, creio, a que mais se revela em
cada pergunta. Ao poeta chileno, por exemplo, ela faz (bem ao seu estilo) a
seguinte indagação: “Neruda, escrever
melhora a angústia de viver?” Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício,
se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Sobre Clarice, abaixo
reproduzo os depoimentos de personalidades como Millôr Fernandes, Isaac
Karabtchevski, Lygia Fagundes Telles e Maria Bonomi:
Millôr Fernandes
“Rio. A cidade era muito
menor. A População nenhuma. E reduzida pra todos nós a um pequeno grupo. No
caso de Clarice o grupo básico era Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo
Mendes Campos, Hélio Pelegrino, Rubem Braga, Sérgio Porto. A Qualquer momento
todos sabíamos onde estava qualquer um. Era fácil, estávamos sempre juntos. E
aquela mulher alta na geração dela 1,70 era muito alta bonita pra danar, um
ligeiro sotaque que ela nunca perdeu, e ninguém sabia onde adquiriu. Pois
chegou aqui, da Ucrânia (Tchetchelnik), com apena dois anos de idade.
Telefonávamos pra ela,
atendia o Maury Gurgel Valente, o marido, diplomata, homem de grande
personalidade, vale dizer. Falávamos com ele alguns minutos e pedíamos pra
falar com Clarice. Muitos minutos. Inaugurávamos, ela inaugurava, sem saber,
uma “ascensão da mulher”, pelo menos telefônica.
Não, não sei o que
escrever sobre Clarice. Nos últimos anos, só falávamos ao telefone, ela me
assustava. Nossos mundos se afastavam. Enquanto
eu corria pela praia, uma vida totalmente extrovertida, ela mergulhava cada vez
mais (talvez marcada pelo momento em que acordou no quarto em chamas) naquele
seu mundo inescrutável.
É uma figura que não sei
analisar; O ser humano e a escritora são indissociáveis. E sem comparação. Só
me lembra, e não sei se correta ou justamente, a figura de Rimbaud, perdido no
espaço, perdido do mundo. 10 anos naqueles quase-desertos de Harar, na
Abissínia, sol permanentemente ao meio-dia, sem ninguém a que comunicar a sua
ânsia, sem nenhum lugar em que ficar, atraído por todos os perigos do mundo.
Clarice cada vez mergulhava mais em si mesma, tentando se comunicar não sei com
quê. Eu, pelo menos, já não a entendia.”
Isaac Karabtchevsk
“Foi um telefonema: ‘Isaac
aqui é Clarice Lispector. Preciso falar com você, é sobre uma entrevista para a
Manchete’. Até aquele momento, Clarice era um mito, inatingível para um
recém-formado maestro, à busca de seu espaço. Via nela alguém com as mesmas
origens de minha família, fugida de Kiev, na Ucrânia e, como todos os judeus da
época, ameaçada pelos cossacos, escondendo-se em porões e procurando escapar.
Era a saga de toda uma geração que, chegando ao Brasil, aqui reencontraria o
sentido da vida, educaria seus filhos dentro de princípios de transigência e de
liberdade. Ela chegou ao meu apartamento em Botafogo assim, simples, humana.
Lembro-me de sua doçura, do ar de mistério que dela desprendia. O momento que ficou gravado, indelével em
minha memória, foi a percepção do gênio, daquele que quando de nós se aproxima
consegue inspirar e comover.”
Lygia Fagundes Telles
“Éramos amigas muito
próximas. Certa vez, em Cali, na Colômbia, abandonamos os debates para ficar no
bar, bebendo champanhe (ela) e vinho tinto, enquanto ríamos gostosamente e ela
pedia a minha opinião sobre quem era mais indiscreto nas suas traições, o homem
ou a mulher. Aliás, na viagem de ida, quando o avião balançava muito e eu
estava preocupada, Clarice se voltou para mim i disse: ‘Não tenha medo porque o
avião não vai cair. Minha cartomante disse que eu morreria deitada, portanto
fique tranquila.’ “
Maria Bonomi
“A lembranças são
infinitas pois ela era minha comadre onipresente. Todos os assuntos que tocava
transbordavam de interesse, conhecimento e afeto prático. Me impressionava como
se dedicava a discutir e tudo se solucionava numa névoa de sabedoria mágica. As
regras e os limites eram despoluídos por ela que os tornava moldes de
pensamente para mim, Mas nunca encerrávamos a conversa. Ela dia que ‘a conversa
deve ser inacabada’.
Surpreende como extraia da
rotina do cotidiano ingredientes poéticos e por isso aparentemente sofria,
parecendo uma pessoa ‘incerta’ (como você diz) por se assustar ao lidar com o
inefável mesmo através da rotina. A criação fluindo aberta, puro poder, pura
predestinação. Para mim desde Washington, 1958 até o final.”
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