Um
acontecimento corriqueiro e um outro, com desfecho absolutamente inusitado, levam G.H. –
mulher independente e livre: sem marido e sem filhos – a refletir, rever e
reconsiderar suas posições e conceitos em relação a si mesma e ao mundo. São
muitos os questionamentos de G.H. Com eles um a um, não sem algum temor, ela
vai se livrando do seu invólucro habitual para aos poucos assumir o seu real
“eu”, o seu “eu” sem capa ou máscara, o seu “eu” íntimo e consciente, o seu,
segundo ela mesma: “novo modo de ser”. “...
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se
transformar para eu caber nele.”
“... Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida.”
Há um embate em cada questionamento, em
cada descoberta. G. H. os enfrenta, decifra-os e segue resolutamente em sua
nova direção. No filme matrix o protagonista se viu entre duas escolhas: tomar a
pílula azul ou a pílula vermelha. A primeira o manteria ignorante à realidade
do mundo e ele acreditaria no quisesse acreditar. A segunda ao contrário o
despertaria e lhe revelaria a dura realidade do sistema em vivia e de seu papel
dentro daquele sistema. O herói opta pela pílula vermelha. Para G. H. a pílula
vermelha foi representada pelos dois acontecimentos aqui abordados. Da mesma
forma como aconteceu com o herói do filme; G. H. ingere a pílula vermelha, e
daí lhe advém os temores e incertezas inerentes a nova escolha. O que a pode
manter no caminho é, antes de ser o amor a verdade, o horror ao falso ao
subterfúgio. Ela já não quer a terceira perna que a prendia e que, limitando-a,
oferecia-lhe certa comodidade e segurança. “...
O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo
guiar pelo que for acontecendo?"
"Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.”
"Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.”
“Não posso pôr em
palavras qual era o sistema, mas eu vivia num sistema.”
O
acontecimento corriqueiro: a demissão da empregada é o estalo. “Ontem de manhã – quando saí da sala para o
quarto da empregada – nada me fazia supor que eu estava a um passo da
descoberta de um império. A um passo de mim.” O fato proporciona também
alguns bônus mais imediatos e perceptíveis: “...
há muito tempo meu apartamento não me pertencia tanto.” “... eu ganhando de
novo o gosto ligeiramente insípido e feliz da liberdade.”
Quem era a G. H. de antes? “... pouco a pouco eu havia me transformado
na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É suficiente ver no
couro de minhas valises as iniciais G. H., e eis-me. Também dos outros eu não
exigia mais do que a primeira cobertura das iniciais dos nomes.”
“Em torno de mim espalho a
traquilidade que vem de se chegar a um grau de realização a ponto de ser G. H.
até nas valises.
A revelação
não acontece por acaso, embora o acaso a favoreça ela só se torna possível pela
busca continua: “... nunca soube ver sem
logo precisar mais do que ver.” “E vivendo o meu “mal”, eu vivia o lado avesso
daquilo que nem sequer eu conseguiria querer ou tentar. Assim como quem segue à
risca e com amor uma vida de “devassidão”, e pelo menos tem o oposto do que não
conhece nem pode nem quer: uma vida de freira. Só agora sei que eu já tinha
tudo, embora do modo contrário: eu me provava que – que eu era.”
“O leve prazer geral – que parece
ter sido o tom em que eu vivo ou vivia – talvez viesse de que o mundo não era
eu nem meu: eu podia usufruí-lo. Assim como também aos homens eu não os havia
feito meus, e podia então admirá-los e sinceramente amá-los, como se ama sem
egoísmos, como se ama a uma idéia. Não sendo meus, eu nunca os torturava.”
“esse ela, G. H. no couro das
valises, era eu: sou eu – ainda? Não. Desde já cálculo que aquilo que de mais
duro minha vaidade terá de enfrentar será o julgamento de mim mesma: Terei toda
a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.”
O segundo
acontecimento se dá no quarto da empregada. Resolvida a arrumá-lo, muito ao
contrário do que imaginava, G. H. o encontra limpo e organizado, e, pela
observação de alguns detalhes, ela pensa um pouco mais apuradamente sobre a
figura de sua ex-empregada cuja fisionomia inclusive lhe escapa
momentaneamente.
No quarto
antevê-se a revelação mais profunda, o total mergulho, a catarse. “Como explicar, senão que estava acontecendo
o que não entendo. o que seria essa mulher que sou? o que acontecia a um G. H.
no couro da valise? O que acontecia?"
"Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá.”
"Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá.”
Abrindo a porta estreita e
emperrada do guarda-roupa, com algum esforço G. H. comprime seu rosto entre a
brecha e bem perto de seus olhos vê uma barata.
“Pela lentidão e grossura era uma barata
muito velha. No meu arcaico horror por baratas eu aprendera a adivinhar mesmo a
distância suas idades e perigos; mesmo sem nunca ter realmente encarado uma
barata eu conhecia os seus processos de existência.”
O “imemorial” inseto, mais antigo que o homem neste planeta e muito
mais resistente é o provocador do mergulho, o mergulho absoluto, o mergulho
rumo ao desconhecido.
“A Paixão Segundo G. H.” é o relato de
uma comunhão, a mais ampla a mais ilimitada das comunhões. Uma comunhão onde a
necessária confissão é simultânea, e, onde nem mesmo falta o simbolismo
cristão da comunhão, – lá representado de forma
absolutamente sui generis. O segundo
nome de “A Paixão Segundo G. H.” seria este: UMA COMUNHÃO!
Seu blog está perfeito para os amantes da leitura e para os que não são uma oportunidade para começar nesse universo de magias.
ResponderExcluirClarice Lispector- Só para Mulheres
“Sejam vocês mesmas! Estudem cuidadosamente o que há de positivo ou negativo na sua pessoa e tirem partido disso. A mulher inteligente tira partido até dos pontos negativos. Uma boca demasiadamente rasgada, uns olhos pequenos, um nariz não muito correto podem servir para marcar o seu tipo e torná-lo mais atraente.
Desde que seja seu mesmo.” (Helen Palmer)
Clarise com o pseudônimo Helen Palmer